Chefs viram maestros da cozinha para afinar a comida e a trilha sonora dos restaurantes

Postado por Luisa Talento , 30 de nov. de 2010

Desde que a gastronomia tomou corpo e passou a fazer parte da vida das pessoas, o ato de comer mudou de status. Muito mais do que suprir a necessidade física vital – o que já não é pouco –, fazer uma refeição passa a ser sinônimo de experimentar sensações. Para a experiência ser completa, todos os sentidos devem ser estimulados, revigorados. Assim, a trilha sonora dos restaurantes torna-se peça fundamental no jogo culinário, cuja regra é: se a música não combinar com o prato, o momento, o clima da casa, seu chef ficará, certamente, algumas rodadas sem atirar o dado.

Bel Coelho não corre esse risco. Impossível jantar em seu Clandestino, em São Paulo, sem notar que a trilha sonora parece acompanhar cada etapa do menu degustação. As primeiras taças de champanhe vêm com a voz suave, baixinha de Carla Bruni, primeira dama da França; o prato que pinta uma praia traz o som de João Gilberto e sua bossa sincopada; a sobremesa é embalada por Gal Costa, em “Baby”. Entre uma garfada e outra, os comensais balançam os pés, a cabeça, deixam escapar um pedaço de letra.
A trilha do restaurante de Roberta Sudbrack, no Rio de Janeiro é discreta, elegante, bem humorada, exatamente como seus pratos. Música é mesmo coisa séria por lá. Na caixa, Josefine Backer canta Caymmi e Marina Lima, "Emoções". A troca do CD, duas vezes por ano, acompanha a da coleção de pratos. Quiabo, banana, chuchu. Brigite Bardot, Dalva de Oliveira, De Phazz. Maxixe, abóbora. Trini Lopez, Adoniran Barbosa.

Os frequentadores da casa já sabem disso e correm para lá sempre que a chef anuncia, em seu concorrido twitter, novidades na “SudVitrola”. “Tem gente que diz que não sabe se gosta mais da minha comida ou da música que ponho”, diz a chef. A declaração, entre a clientela cativa, é controversa. “A melhor música da Roberta ainda é o som do brigadeiro de colher dentro da boca”, diz Flora Gil. No fim, tudo termina mesmo em melodia.

Roberta entende que o som deve acompanhar tanto o ritmo da refeição, quanto o do trabalho da equipe. Lá, o som do salão também tem saída na cozinha. “Tem que haver harmonia entre todos os elementos do serviço, para que o momento seja perfeito.” Em sua casa, música de fundo com cara de elevador de prédio comercial ou de consultórios dentários não tem vez“.

O serviço de um restaurante já tem a própria musicalidade. O som de quando as pessoas chegam para o primeiro drinque, degustam pratos principais ou encerram o jantar é completamente diferente”, afirma. Neste último momento, sua caixa toca “amanhã vai ser outro dia”, versos de “Apesar de Você”, na voz de Chico Buarque. Hora de as pessoas irem embora levando pão fresco embrulhado em papel pardo e manteiga em lata para o café da manhã seguinte. Hora de a brigada arregaçar o uniforme para lavar o chão da cozinha e partir para o descanso dos justos.

Parece mesmo que a música certa pode realçar o sabor, as cores do prato, o momento. Roberta diz que sua tortinha de pera com tapioca (veja a receita abaixo) vai bem com Roberto Carlos – nem precisa dizer que o doce reina entre as sobremesas da casa. No horário de pico, quando a cozinha começa a soltar freneticamente pratos chaves do menu, a levada é de Talking Heads – tudo a ver, ainda, com as tuitadas de Roberta, que trazem fotos do serviço em tempo real, no melhor estilo "Psycho Killer".

Bel anda tão empolgada com o gostoso ritmo que cozinha no Clandestino, apenas uma vez por semana e para quinze pessoas, que está deixando a inspiração musical descer as escadas até o salão do Dui, seu restaurante maior e diário, no andar de baixo. Para acompanhar o risoto de paio com favas e couves, clássico do cardápio, a chef sugere Dave Bruback em "Take Five".

Os integrantes da Cia Tradicional do Comércio, proprietários de diversas casas na área, em São Paulo e no Rio, engrossam o coro que defende afinação entre ingredientes e pick-ups. Tanto que contrataram um DJ para fazer a trilha de cada um de seus restaurantes. Felipe Venâncio montou os plays lists de acordo com a proposta de ambiente e cardápio da casa. O Pirajá, bar em estilo carioca, toca samba; a Lanchonete da Cidade serve banana split ao som de hits da Jovem Guarda; no SubAstor, rock and roll acompanha bem os drinques do mixologista Márcio Silva.

Se a prática é comum entre os amantes da música, imagine quando o dono da casa trocou baquetas por comandas? Rocco é baterista e voou de Los Angeles a São Paulo para abrir a casa de falafel que em poucos meses conquistou a cidade. Além dos delirantes bolinhos de grão de bico e pratos bacanas, a casa tem as play lists do músico como chamariz. “É genial ver como a emoção gastronômica se mistura à musical”, diz. O segredo do sucesso, ele acredita, está justamente na harmonia de todos os elementos que compõem o bar. “Tudo tem que estar na medida: comida, bebida, som, luz.” O volume da música também é importante. “A faixa tem de ser escutada, mas sem atrapalhar a conversa. É o máximo quando alguém pergunta se não dá para aumentar um pouquinho porque está curtindo o som”, afirma. E ele toca um pouco de tudo. Soul, reggae, cool jazz, sempre das décadas de 60 e 70. “Adoro ver as senhoras comendo matzo ball (tradicional sopa judaica), enquanto ouvem Bob Marley.”

Da mesma forma que acontece no restaurante de Roberta Sudbrack, tem cliente que pede para levar a trilha do Falafa para casa. “Este é um trabalho de uma vida toda, não tenho nem como atribuir valores monetários a ele”, diz Rocco. O momento de trocar a trilha foi descoberto no dia a dia. “É quando a brigada canta de cor as músicas que nunca tinha ouvido antes.” Percebe-se assim que a investida musical está rendendo frutos que vão além de criar ambientes agradáveis. Estes profissionais estão agregando cultura à vida de seus funcionários, abrindo horizontes e mentes. Nesse ritmo, as escolas de cozinha terão que incluir uma nova cadeira na grade curricular: educação musical.

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